Modismo

Virou moda nos últimos anos, alavancada pelas posturas que são alardeadas como politicamente corretas e, principalmente, pelo implemento desta nova era digital, o uso da palavra gratidão.
A gratidão, por definição, seria a característica daquele que está grato ou é agradecido. Todavia, todos os dias somos soterrados por posts que nos incitam a curtir a enorme demanda de informações e emoções, aparentemente boas e instigantes, das quais muitas pessoas estão carentes.
Textos esotéricos, religiosos, de autoajuda ou sobre saúde, entre muitos outros, que por oferecerem às pessoas soluções que, a seus olhos ávidos de felicidade, aparentam ser mais ou menos mágicas para seus problemas, colocam-nas à mercê da gratidão necessária. Passamos a ter a obrigação de usar essa palavra sem, no entanto, nos darmos conta de seu significado.

Repertório variado e completo

É comum, por exemplo, durante uma transmissão ao vivo pelo Facebook, geralmente sobre assuntos que preenchem de alguma maneira uma necessidade intima ou popular, que o autor esqueça de mencionar em seus conselhos que, para se conseguir este ou aquele benefício, é preciso arregaçar as mangas e trabalhar intensamente. Existindo a enganosa aparência de ser algo fácil de se obter, observamos uma enxurrada de instintivas respostas que contém uma única palavra: gratidão.
E são coisas de todos os tipos: de emagrecimento ou obtenção de níveis confiáveis de colesterol ou glicemia, passando por paz interior ou desaparecimento da depressão e chegando aos caminhos infalíveis para iluminação espiritual. Existe de tudo. Para todas as necessidades e para todo tipo de preferência. Da yoga à malhação. Do veganismo à dieta dos carboidratos. De Cristo à Buda. Um repertório completo e de fácil acesso faz brilhar os olhos dos que se afinam com as propostas, com certeza.

Você está agradecido pelo que mesmo?

Ora, como podemos estar agradecidos pela simples indicação de coisas que nem sabemos se temos condições de obter ou fazer? Como podemos estar agradecidos apenas por palavras bonitas que nem sequer tivemos tempo de passar pelo crivo da razão? Ou apenas porque supostamente alardeiam terapias, técnicas, liturgias ou rituais de bom histórico? Isso para não falar nas coisas ditas alternativas.
Essas soluções funcionariam para nós? Já refletimos sobre isso? Estamos mesmo dispostos a sair do zero e passar uma dezena de horas tentando uma quase impossível postura do yoga, mas que sabidamente apresenta benefícios incríveis? Ou quem sabe começar aqueles difíceis exercícios que obviamente diminuem a barriga, mesmo sem saber se vão prejudicar nossa coluna lombar ou se são adequados para nossa idade e condição física?
E o que não dizer dos ensinamentos filosóficos ou religiosos que nos pedem abstenções difíceis, despojamento de egoísmo e vaidades ou o melhor uso do tempo que nos sobra em favor dos necessitados? Como abrir mão das coisas que nos são tão importantes e ao mesmo tempo obter paz de espírito?

Agradecemos sem pensar

Quando ouvimos ou lemos sobre essas maravilhas, repetimos como papagaios treinados a palavra gratidão, quase como um louvor, só faltando nos ajoelhar:
“Oh! Gratidão por suas sábias palavras! Gratidão! ”
Estamos mesmo gratos? Terão aqueles conselhos movimentado dentro de nós a emoção que deve acompanhar uma gratidão verdadeira ou estarão apenas despertando nossas necessidades ou desejos?
De qualquer maneira, quando nos damos conta das dificuldades, costumamos fazer a mesma coisa que fazemos quando não somos atendidos pela divindade ou por seus intermediários, isto é, ficamos zangados. E a tal gratidão foi para o espaço.
É como o jogador de futebol que ganhou o jogo e diz que deus o abençoou. Terá por acaso este mesmo deus amaldiçoado o perdedor?
E quando ele próprio perder? Deixará de ser grato ao deus no qual acredita?
Gratidão depende apenas do benefício?

Beneficiado e benfeitor

A gratidão verdadeira deve gerar uma sensação de paz, mas, mais precisamente, de dívida com o benfeitor, isto é, deve mobilizar ternas emoções e despertar a vontade de amar ao próximo e de passar adiante o benefício obtido (e não o proclamado), mesmo que seja subjetivo.
Não a dívida que obriga, mas a que desperta e ilumina.
Se você se diz grato para todas as coisas bonitas que lhe acenam, preste atenção porque você pode estar confundindo gratidão com ansiedade pelos problemas não resolvidos ou com a preguiça para resolve-los. Aquela ilusão escondida de que suas necessidades serão supridas de maneira mágica e sem esforço.
Ou então, no outro extremo, por conta de uma arrogância velada, você pode ser daqueles que nunca agradecem nada porque acham que os outros têm obrigações para com você.
O benfeitor, por sua vez, deveria apenas entender que, se considerarmos o amor fraterno, está apenas cumprindo sua obrigação, e não poderia se preocupar com o troco, com a dívida e muito menos com a contabilidade. Isto é, se você não tolera não receber curtidas ou coraçõezinhos, por exemplo, nos posts que publica ou fica sentido quando faz algo para alguém e não obtém a contrapartida do humilde agradecimento, mesmo que vazio e protocolar, desconfie que você é apenas um interesseiro emocional.
Também no outro extremo, sempre convém avaliar se você, suposto benfeitor, não quer mais é controlar a vida do outro com suas benesses.
No final das contas, se a gratidão despertar a sensação de impotência no necessitado ou de vaidade no benfeitor, de ambos os lados existe alguma coisa errada. E se, em qualquer situação aparecer irritação, pare imediatamente, dê dois passos para trás e reavalie a questão.
O dar e o receber sem segundas intenções, mesmo que não se tenha consciência disso, deveria ser apenas acompanhado do sorriso que traduz um amor fraterno e não de palavras. Aliás, é disso que se trata a verdadeira gratidão. Desperta fortes e boas emoções e não palavras jogadas ao vento. E, de qualquer modo, o amor nunca deveria ser banalizado.

Resumo:

– a verdadeira gratidão deveria gerar uma sensação de dívida positiva e não ameaçadora

– se a gratidão despertar a sensação de impotência no necessitado ou de vaidade no benfeitor, de ambos os lados existe alguma coisa errada

– a palavra gratidão foi banalizada por interesses doentios de ambas as partes; coisas como preguiça e arrogância costumam permear cada um dos lados


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