Jogar fora o passado porque a moda é viver o hoje?
Muito se tem falado, em prosa e verso, sobre o dia de hoje, como se um novo ovo de Colombo tivesse sido descoberto. Em todas as mídias pululam artigos, textos, livros, vídeos e tudo mais que houver, sobre a necessidade de vivermos o presente. Como se todos tivessem se dado conta, num repente, da obviedade desse pensamento.
Menos mal, não fossem as decorrências enganosas que se tiram dessa afirmação, especialmente quando ditas à revelia do bom senso e da responsabilidade.
É como se o passado, que naturalmente não mais existe, tivesse em sua partida retirado de circulação todos nossos enganos e defeitos.

Continuamos a ser as mesmas pessoas
Esse pequeno detalhe continua, todavia, para assombrar nossos dias no presente, caso não assumamos as responsabilidades do que já fizemos com nossos erros, fraquezas e desejos.
Fácil seria embarcar no alegre bonde, inteligente é verdade, onde o único momento que temos para sermos mais felizes é o dia de hoje. Porém, é também o único instante disponível para reconhecermos quem somos de fato e pararmos de nos enganar.
Outro dia encontrei a seguinte frase: “Acordar para quem você é requer desapego de quem você imagina ser”. Nada mais verdadeiro.
Vendemos tantas ilusões que acabamos por acreditar em algumas delas.

Então, o que seria viver apenas o dia de hoje?
Viver o presente, em relação ao passado, significa não guardar mágoas e, em relação ao futuro, significa não criar expectativas. Em relação ao passado significa deixar ir, desapegar-se. Em relação ao futuro significa aceitar o que o que for vir sem se preocupar, já que não temos como controlá-lo. Além disso, o que chamamos de agora, de instante presente, se formos rigorosos, é apenas uma rápida e permanente transição entre o passado e o futuro.
Então, para viver o dia de hoje em paz, aproveitando cada momento, desfrutando cada olhar, dividindo todo amor, pois que ele sobra no coração pacificado, se faz necessário, principalmente, aproveitar este exato segundo para a modificação interior, pois outro não há.
A modificação é um reconhecimento que, mesmo que o passado não mais exista, ele fez parte da nossa construção, que continua. Então também se faz necessário, muitas vezes, um planejamento, que será avivado a cada novo instante. E sempre é bom não confundir planejamento com preocupação.

A difícil mágica da vida
Já que tudo pode estar plasmado no universo de forma perene, o ser não pode fazer de conta que ao raiar de um novo dia uma magia acontecerá, e da mesma forma que o passado, suas ações anteriores desaparecerão.
É um engano, posto que muitas de suas decorrências também continuam. Se faltou empatia ou compaixão, se sobrou insensatez ou desrespeito ao outro, se mergulhou em seus desejos sem observar o mundo ao redor, o ser pode agora, na paz do dia de hoje, reconstruir essa sua parte para que a obra toda não se deteriore.
Não pode voltar ao passado e sequer pode determinar o futuro, mas pode ser mais humilde, mais honesto e até mais esperto ao admitir eventuais enganos; pode olhar uma vez mais para si mesmo e, com alegria, perceber as coisas que já ficaram para trás e observar seu grande potencial de trabalho nesta parte do jardim que lhe foi confiada pela grande consciência universal.
Pode ser mais eficiente no cuidado da unidade, pensando na possibilidade de sermos todos apenas um.
O que não pode mesmo é fazer de conta que é bonzinho ou posar de santo, isto é, fingir que nunca comete erros ou que é um ser muito virtuoso. Até porque é insustentável, não leva a nada e logo todos percebem as mentiras embutidas no discurso.

Conclusão
Não podemos modificar o passado e tampouco prever o futuro, mas o presente glorioso nos é apresentado como uma oportunidade. Oportunidade de deixarmos de lado essa coisa de levar vantagens, de querermos ser os melhores, os mais bonitos, espertos, ricos ou até mesmo sermos o outro, quem sabe. Oportunidade de não pleitearmos aplausos por nossas conquistas, mesmo porque, rapidamente, elas também passam. Oportunidade de desfrutarmos a beleza da vida de dentro para fora, independente do que possuímos ou das benesses e amores que podemos vir a receber dos outros.
O que muitos acham mesmo é que a maior oportunidade de se viver no hoje é de, não apenas percebermos a diferença entre a necessidade e o querer, como aprendermos a deixar ir o próprio querer.
Que o desejo seja apenas o de uma linda vida para todos os seres, inclusive para você.