Então imagine se você tivesse nascido no século XVIII, aqui mesmo no Brasil. Pode imaginar?
Seu nome seria Jonas e teria recebido de seu pai, forte fazendeiro na região das matas das Minas Gerais, muita terra bruta, em reconhecimento de sua força para o trabalho e determinação para lidar com os negócios. Era seu preferido, pois eram muito parecidos no jeito de ver as coisas.
Eram terras que ninguém queria, das quais seu pai se apropriara em troca de uma dívida de um amigo, ao qual emprestara grande soma de dinheiro. O homem acabou indo embora para Portugal desistindo de reaver as terras.
Nelas existiam apenas ruínas de antiga fazenda, com campos ressecados, senzalas inaproveitáveis e uma casa grande caindo aos pedaços.
Mandou derrubar tudo e começou do zero.
Na época em que imaginamos esta sua vida você teria já seus 35 anos e já havia transformado aquelas terras virgens numa verdadeira maravilha, sendo admirado por todos na família. Ria-se dos cinco irmãos mais novos que aceitaram do pai fazendinhas prontas e nelas tocavam suas vidinhas insípidas.
Tinha grande orgulho de sua inteligência para conseguir melhorias e logo transformou a propriedade numa grande plantação, que se perdia de vista. Gostava de se gabar que havia conseguido tudo cravando as mãos na terra para cultiva-la, o que não correspondia bem à verdade. Quem trabalhava de fato eram os muitos escravos. Dezenas dele. E a que preço.
Tratava a todos na base da chibata, não se importando se morressem no tronco. Separava famílias, vendendo pais ou filhos se a proposta fosse boa. Comprava outros tantos nas mesmas condições. Negras eram usadas como reprodutoras. Não se importava com o sofrimento de nenhum deles.
Não era difícil perceber porque era o preferido do pai, que sempre o ensinou que escravos eram apenas parte do negócio e deviam ser mantidos sob o peso de chicote para não tirarem as manguinhas de fora. Até um pouco de fome deveriam passar para não ficarem pensando em outras bobagens.
E a vida foi passando tranquila. Fez um casamento arranjado e teve vários filhos. Morava numa linda casa. Quando enjoava da mulher procurava escravas jovenzinhas e bonitas para passar o tempo. Ai de quem se recusasse. E quando tinham seus filhos, eram apenas mais mão de obra para a fazenda. Ria-se disso. Todos fingiam não saber, inclusive a família.
Com a morte do pai, já com seus 50 anos acabou herdando mais terras, que anexou às suas, transformando a Fazenda Santa Ana num verdadeiro império. Tornou-se o mais forte fazendeiro de toda região.
Não cabia em si de orgulho e terminou por dar uma grande festa, para a qual até mesmo os escravos foram convidados. Nas senzalas foram autorizados a matar dois bois e a festejarem a noite toda.
Muito convidados importantes desfilaram na casa grande, incluindo os médicos, construtores, professores e muitos padres da região, despejando bajulações e alimentando sua já incontida sensação de que era mais esperto, inteligente e poderoso que os demais. Entendia de tudo. Tudo sabia e nada lhe escapava. Como sempre, derrubava todo e qualquer argumento em qualquer conversa e sobre qualquer assunto. E ninguém, naturalmente, se atrevia a levar as contestações muito adiante, pois todos nas redondezas precisavam de seus muitos favores, embora rissem pelas suas costas.
Bem, para encurtar sua história, logo começou a sofrer do coração e a acreditar nas falações dos escravos sobre os espíritos que haviam morrido na antiga fazenda e que agora vagavam por ali. Com a doença cardíaca piorando, sentia dores horríveis no peito e logo imaginou que fossem as mãos em garra dos escravos mortos buscando vingança, aliás, como se cochichava mesmo pelas plantações.
Começou a beber demais e, sem demora, a enlouquecer. Logo foi tido como um velho maluco e bêbado. Os filhos já tocavam a fazenda; ele fugia da casa e se embrenhava pelo mato para fugir das vozes ameaçadoras que achava ouvir. Um dia foi encontrado morto na pedreira e o boato que correu é que os escravos se aproveitaram de sua situação para empurrá-lo montanha abaixo.
Trocando de época e voltando aos dias atuais não é difícil perceber, que embora não nos vangloriemos hoje de crescer às custas de nossos escravos, muitos de nós continuamos a cultivar a adoração de nosso próprio ego.
Nos sentimos melhores que os outros, os ignorantes de uma forma geral, que não entendem o que nós achamos que já entendemos, ou que não partilhem de nossas opiniões ou crenças, por mais estapafúrdias que sejam.
Fazemos pouco caso e chegamos a tratar as questões que nos são óbvias com escárnio. A opinião dos outros não nos interessa. Sabemos mais que os médicos sobre nossas doenças; sabemos também mais que os engenheiros sobre a construção de nossas casas; entendemos de leis mais que os advogados e juízes e não suportamos decisões que não nos beneficiam, já que temos sempre razão; nos problemas familiares então, somos mestres em tomar decisões absurdas e ficamos irados se contrariados. Não temos, de uma forma geral, qualquer compaixão quando magoamos as pessoas, desnecessariamente, ao tentar impor nosso ego inflado.
Afinal, somos especialistas em tudo, formados pelas escolas do dr. Google e pela opinião das redes sociais, onde apresentamos nossos problemas devidamente acondicionados em lindos posts recheados de meias verdades.
Nesse processo do evoluir da humanidade, embora apenas pouco mais de dois séculos tenham se passado, não é difícil perceber que o Jonas ainda mora dentro de você, caso ainda pense e se comporte dessa maneira.
Para o ignorante fazendeiro, limitado a seu mundinho social, o orgulho era compreensível, digamos, e até socialmente aceito em função de seu poder econômico.
Mas hoje, mesmo imaginando que também fazem chacota pelas nossas costas, continuamos a falar coisas absurdas, sem qualquer pudor ou medo do ridículo, pois nos achamos o último biscoito do pacote, até mesmo quando nosso sucesso capenga nos condena. Ao contrário do que gostamos de pensar, as pessoas não são burras e não somos melhores que elas em tudo, mas não cogitamos mudanças que nos façam sermos mais amados de verdade e, por consequência, mais felizes. Não pedimos a opinião de ninguém e não aceitamos ajuda que não seja desenhada por nós. Enfim, nosso orgulho nos cega e maltrata.

Resumo:

– o orgulho é a origem primeira de todos nossos defeitos e, por conseguinte, de nossas dores

– o orgulho, ao nos cegar para quem realmente somos, especialmente para nossas limitações, não possibilita que recebamos a ajuda possível que o mundo tem a nos oferecer; rapidamente nos tornamos alvos da piada alheia

– ele também promove para conosco, vinda daqueles que realmente gostariam de nos ver mais felizes, uma antipatia crescente e desanimada; quase um desconsolo com nossas atitudes; cria-se uma roda sem saída, que não para nunca de girar e de nos fazer sofrer

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