Imagine se você tivesse vivido em meados do século XI da era cristã. Pode imaginar?
Seu nome seria Angelim e na época que imaginamos sua história você teria seus 40 e poucos anos e viveria em terras da península ibérica, usufruindo de alto cargo no clero.
Alto, gordo, barba ruiva, você seria um bispo ou um padre de alto escalão na igreja, membro atuante de um tribunal da Inquisição. Trabalhava, digamos assim, numa enorme construção de pedras escuras, fria, onde o ar parecia impregnado com o cheiro da fumaça que saía dos enormes braseiros de aquecimento. Tratava-se de um mosteiro e o ano em questão era o de 1266.
O inquisidor e a intolerância
Eram tempos ocupados para os padres, pois a igreja se posicionava fortemente contra os hereges e a obrigação dos cristãos era justamente a de defender o nome do cordeiro. O povo clamava por proteção contra as mulheres que faziam feitiçarias e contra os homens que blasfemavam contra Deus. Muitos bruxos estavam à solta. Precisavam ser caçados e julgados com o peso das punições divinas.
Qualquer um que mexesse com ervas ou cura, que tivesse qualquer tipo de cultura considerada imprópria como, simplesmente, em certos casos, saber ler um manuscrito, ou que tivesse doenças estranhas, desmaios ou ainda expressasse qualquer pensamento tido como suspeito, acabava sendo arrastado às barras dos tribunais da igreja. Mentiras eram construídas.
Julgamentos sumários e sem possibilidades de defesa eram a regra. Dependia muito do nível social e das conotações políticas do acusado. Quando moedas de ouro eram oferecidas em troca de um passe livre para a fuga, algumas benesses eram concedidas na calada da noite. O cidadão desaparecia e nada mais se sabia sobre ele, embora os proclamas o colocassem no rol dos executados.
Havia muita fome e miséria fora dos muros da abadia. A cidade era fria, chuvosa e coberta de lama; ruelas imundas, cheias de ratos e gente pobre pelos becos, com muitas crianças sujas e famintas perambulando por ali procurando qualquer coisa para comer ou roubar. Um caos olhado com desdém por padres como Angelim, que desfilavam seu poder em pequenas liteiras levadas por amedrontados serviçais.
Só o que importava era libertar o mundo dos infiéis, função que cumpria à risca nos tribunais subterrâneos, por acreditar piamente em feitiçarias.
Pessoas de todas as idades eram atiradas às fogueiras sem qualquer piedade ou constrangimento de sua parte ou dos demais inquisidores.
As desculpas
Nascido numa família simples, aos 8 anos teve seus pais e irmãos menores queimados também numa fogueira por membros de uma seita de fanáticos, que dançavam e promoviam um espetáculo de pirotecnia com pós coloridos, enquanto sacrificavam suas presas. Conseguiu fugir, sendo recolhido num convento de padres, onde cresceu e se tornou um caçador de bruxos, tendo suas convicções facilmente alimentadas por seu ódio aos hereges que mataram sua família.
E como todo aquele que vive na intolerância, terminou morto por seus pares, acusado que foi de apaixonar-se por uma feiticeira já condenada, a quem tentou salvar. Um escândalo. Foi traído, julgado e condenado à mesma fogueira para onde tinha enviado dezenas de inocentes.
Revoltou-se contra os colegas ingratos, pois sempre trabalhara em nome de Deus, esquecido que, de fato, o que o nutria mesmo era sua intolerância por aqueles que, supostamente, não rezavam por sua cartilha; além de seu ódio, seu bem-estar e seus interesses financeiros, sempre acima de um suposto amor pela igreja ou pelo seu rebanho.
Agressivos donos da verdade
Quando olhamos para sua história pelo prisma dos dias atuais, não nos é difícil perceber que continuamos a ser intolerantes, especialmente com aqueles que não consideramos nossos pares, aqueles que não pensam como nós, aqueles que não professam as mesmas crenças religiosas, que não torcem pelos mesmos times, que não têm as mesmas convicções sobre sexualidade ou não defendem as mesmas ideias políticas, por exemplo.
Da mesma maneira também não há nenhuma dificuldade em notar que nosso fim será o mesmo, isto é, se não acabarmos feridos ou mortos por nossos inimigos imaginários em torcidas de futebol, como vemos todos os dias ou em guerras religiosas que encobrem outras tantas ferozes disputas ou ainda no embate de manifestações de opostos, entre tantas outras querelas, terminaremos por sofrer em nossas pequenas e insípidas vidas de muitas outras formas.
Nossa dificuldade em aceitar as diferenças, desde as pequenas dentro da família ou do trabalho, até as de ordem filosófica, digamos assim, nos coloca num turbilhão, onde agressividade gera agressividade.
Não notamos que, no final das contas, não gostamos de verdade de ninguém e que, portanto, a recíproca será idêntica. Simples assim.
Pseudoverdades passageiras
E como Angelim, como as cabeças das pessoas mudam com o vento, com os modismos, com a situação do momento ou com o simples passar das estações, aqueles que são nossos pares hoje em determinada facção de intolerância, que tanto pode ser o irmão mais novo, como o amigo do trabalho, a noiva, o parceiro político ou o companheiro de copo e de bar, rapidamente, todos podem se bandear para outros times.
E como na intolerância não existe compaixão, assim como Angelim, seremos traídos, magoados, agredidos e esquecidos. Isso para não falar naqueles que agredimos no trivial do dia a dia com nossas palavras rudes ou desdenhosas de superioridade e que, naturalmente, não conseguem gostar de nós; aliás, se não forem santos, também poderão nos agredir.
Resumindo, nossa agressividade impede que sejamos amados ou que tenham solidariedade conosco, pois a exigimos do nosso jeito.
E, também como o bispo medieval, continuaremos a desfiar um repertório infinito de desculpas para nossos atos beligerantes. Nossa ficha parece que não cai nunca.
Até quando?
Até quando a exaustão tomar conta de nós e aceitarmos abrir mão de nossas pseudoverdades. Coisas que até então achávamos essenciais. Ou, pelo menos, identificarmos que tais verdades só servem para nós mesmos e que tentar impô-las na marra, não passa de uma dolorosa insanidade que, com certeza, nos gerará consequências também dolorosas.